Parte 3 - A feminização forçada como despersonalização O nome "feminização forçada" contém o significado de que a feminização será necessariamente humilhante ao submisso. Diríamos que esse seria apenas o "caso paradigmático" da feminização forçada, aquele primeiro caso, em que o submisso não tem prazer em usar roupas femininas. Nesse caso, ao fazê-lo tornar-se mulher, a Dominadora o despersonaliza, o obriga a desmontar toda a construção cultural de gênero, ao modo como ele culturalmente aprendeu a se ver como homem e obrigá-lo a, apesar do pênis, ser uma mulher.
Parte 4 - A feminização forçada como solução política
Uma outra possibilidade, bastante surpreendente e interessante sobre a feminização forçada, surge de sua viabilidade como solução política. o "Scum Manifesto" de Valerie Solanas representa, provavelmente, o radicalismo mais extremo dessa possibilidade. É o típico texto que nos faz compreender o que seria o sadomasoquismo contemporâneo se pudesse romper essa teia de delicadeza e bom-mocismo que cerca a proposta do ssc e, num contexto mais amplo, da "igualdade entre os sexos".
Parte 5 - A feminização forçada como ordem para o travestismo
Adiante veremos que o fênomeno do travestismo é mais amplo que o da feminização forçada e, por isso mesmo, bem mais difícil de caracterizar por uma única definição. Por ora, chamaremos de travestismo o desejo e a prática de se apresentar como o gênero oposto. Devemos observar que o repertório da travesti está delimitado pelos objetos e papéis culturais reservados a cada gênero.
Parte 3 - A feminização forçada como despersonalização
O nome "feminização forçada" contém o significado de que a feminização será necessariamente humilhante ao submisso. Diríamos que esse seria apenas o "caso paradigmático" da feminização forçada, aquele primeiro caso, em que o submisso não tem prazer em usar roupas femininas. Nesse caso, ao fazê-lo tornar-se mulher, a Dominadora o despersonaliza, o obriga a desmontar toda a construção cultural de gênero, ao modo como ele culturalmente aprendeu a se ver como homem e obrigá-lo a, apesar do pênis, ser uma mulher.
Para esse tipo de submisso, é uma experiência profunda de rejeição, pois está identificado com seu corpo sexual masculino e com seu gênero masculino. Não é raro submissos entrarem em típica competição masculina para saber quem agüenta mais chicotadas. Ora, suportar a dor em alto grau é, em muita culturas, um ritual de iniciação tipicamente masculino. Ele ainda estaria provando sua força de guerreiro ante os outros guerreiros e, ao ser forte, faz jus a ser o favorito da Rainha. Porém, quando a Rainha pega seu favorito, o veste de mulher e o faz desfilar para convidados e seus colegas escravos, a humilhação é profunda.
Toda sua força, seu treino para a dor, são negados. As virtudes do escravo masculino são negadas. O pensamento e, mesmo, a queixa que pode ser verbalizada por um escravo nessa situação é: Para que tanto esforço se o que você queria era um viadinho? Uma mulherzinha?
Para alguns, isso pode significar mesmo o fim do "encanto" com a relação com aquela Dominadora. Ao julgar a ordem da Dominadora, o submisso chama de volta seu Superego, a projeção acaba, pois ele não suportou ser despersonalizado a ponto de ser feito o objeto de seus próprios preconceitos. Encontrou o seu limite e a partir daí, seu ego retoma a administração do Id e Superego.
Para outros, a negação de sua masculinidade os libera para mais fundo ainda na espiral de despersonalização, sentem-se mais escravos do que nunca, pois o Ego foi aniquilado a tal ponto que não importa o corpo que tenham, o prazer vem da ordem dada pela Dominadora.
A diferença - e a variação - entre essas respostas possíveis, está no quanto o submisso percebe a reversibilidade de seu estado. Ninguém se livra do Ego. É função do Ego manter uma máscara, uma personalidade mais contínua, que socialmente chamamos de eu. No caso do submisso que julga a ordem da Dominadora, temos um ego que não percebe a reversibilidade de seu estado. Identifica-se a tal ponto com sua situação que ela fica insuportável. Ele precisa sair dali. No segundo caso, o submisso percebe que aquele estado é reversível. E é reversível a qualquer outro estado. Então ele se sente livre, aliviado, inclusive para voltar à sua vida cotidiana, pois nem mesmo ela é definitiva...
Nesse segundo caso, ao invés de apegar-se ao ego, o submisso ganha flexibilidade, aprende a tirar o prazer de seus próprios preconceitos, curto-circuita ainda mais Id e Superego. Ele literalmente "passa por uma prova" e se sente mais capaz. É evidente que a contrapartida é uma aumento de dependência em relação à Dominadora, pois essa flexibilidade tem origem naquela incapacidade do ego em sustentar o inconsciente e seus conflitos.
Se para o submisso sobrou internamente o Id como um vazio que se espraia pelo inconsciente, para a Dominadora sobrou um Superego a administrar. É notável como alguns neo-sádicos, após um pouco de experiência prática, começam a se queixar do desgaste de energia em se manter uma relação sadomasoquista. Ao receber a projeção do Superego, os sádicos passam a ter o controle nas mãos. No caso da despersonalização e, em particular, da feminização forçada, cabe à Dominadora o processo de desmontagem. Literalmente, todo o controle fica nas mãos de quem domina, o que representa um duplo desgaste: preservar a si mesmo e preservar o submisso.
É de se notar que o sadismo original, o do Marquês de Sade, não continha essa nova dificuldade. O sadismo em seu estado não-civilizado não implica em consensualidade, ou seja, dane-se o submisso. Quem quer que tenha lido Sade, notou isso. Porém, o sadismo, como prática, acaba exigindo esse "plus" de quem domina: cuidar do próximo para que ele fique vivo o suficiente para que possa continuar a dar prazer sofrendo...
Para muitas Dominadoras a despersonalização proposta pela feminização forçada é tal como outra qualquer. Trata-se de moldar o submisso a seus desejos e caprichos. Tanto faz se o submisso foi transformado em mesa ou mulher. Para outras Dominadoras é realmente uma brincadeira de bonecas feita com gente viva.
Evidentemente, quanto mais chateado e aborrecido ficar o submisso por ter que se vestir e comportar como mulher, mais interessante o jogo fica.
Para muitas Dominadoras a despersonalização proposta pela feminização forçada é tal como outra qualquer. Trata-se de moldar o submisso a seus desejos e caprichos. Tanto faz se o submisso foi transformado em mesa ou mulher. Para outras Dominadoras é realmente uma brincadeira de bonecas feita com gente viva. Evidentemente, quanto mais chateado e aborrecido ficar o submisso por ter que se vestir e comportar como mulher, mais interessante o jogo fica.
Há um prazer todo especial em "vencer" a natureza isso é, domesticar o animal para que ele aja em oposição ao seu instinto. Nesse sentido, a Dominadora manipula as próprias representações culturais dos gêneros para se impôr ao próprio sexo orgânico que o corpo do submisso apresenta. Por esse motivo, há quem veja a feminização como o termo final de todo o processo de submissão. É um extremo, que, como veremos, pode fazer sentido.
Parte 4 - A feminização forçada como solução políticaUma outra possibilidade, bastante surpreendente e interessante sobre a feminização forçada, surge de sua viabilidade como solução política. o "Scum Manifesto" de Valerie Solanas representa, provavelmente, o radicalismo mais extremo dessa possibilidade. É o típico texto que nos faz compreender o que seria o sadomasoquismo contemporâneo se pudesse romper essa teia de delicadeza e bom-mocismo que cerca a proposta do ssc e, num contexto mais amplo, da "igualdade entre os sexos".
De uma forma muito aguda, Valerie Solanas percebeu, como muitos, que a questão da diferenciação sexual, mais que uma questão moral ou natural, tornou-se uma questão política. Ter um pênis vai muito além de poder cuspir no chão, ser mal-educado, ganhar um maior salário ou mandar no parceiro. Ter um pênis significa um passaporte para o poder e a destruição sistemática do outro nas sociedades machistas, entre as quais encontramos a capitalista.
Percebida a fraude que é o mundo masculino, a mulher assume o controle da sociedade, eliminando tanto o capital como o trabalho, fazendo desmoronar o complexo sistema que justifica a inútil existência dos homens. Como ela diz: "Sendo uma fêmea incompleta, o macho passa a vida procurando se completar, isto é, tornar-se mulher."
São poucas as alternativas que Valerie Solanas vê para o homem na sociedade do futuro: ele pode permanecer permanentemente drogado, transformar-se completamente em mulher, ser confinado para reprodução até que se desenvolvam técnicas artificiais adequadas ou dirigir-se a um centro de suicídio e se matar.
De todas elas, a única que representa solução de continuidade para o homem é uma feminização radical. Só assim ele seria apto a conviver entre mulheres e o "erro" da natureza seria, enfim, corrigido. Evidentemente, o pequeno texto de Valerie Solanas deve ser lido integralmente, não cabendo muita interpretação ou explicação para sua proposta política para além de seu fundamento: os homens devem ser eliminados de uma forma ou de outra.
A feminização forçada aparece aqui como uma obrigação imposta por um novo Estado e uma nova ordem social. Usamos este exemplo para lembrar que a feminização forçada pode ir muito além do contexto do erotismo, do fetichismo ou do sadomasoquismo. Pode ser uma "solução final" para os dilemas da civilização...
Parte 5 - A feminização forçada como ordem para o travestismo
Adiante veremos que o fênomeno do travestismo é mais amplo que o da feminização forçada e, por isso mesmo, bem mais difícil de caracterizar por uma única definição.
Por ora, chamaremos de travestismo o desejo e a prática de se apresentar como o gênero oposto. Devemos observar que o repertório da travesti está delimitado pelos objetos e papéis culturais reservados a cada gênero.
Vamos, inicialmente nos deter sobre o travestismo fetichista, ou seja, aquele em que a pessoa tem excitação e prazer sexual como resultado do comportar-se ou vestir-se como uma pessoa de gênero socialmente oposto ao seu. Batom, cinta-liga, corseletes, calcinhas, sutiã só fazem sentido para o submisso fetichista se ele compreende o código cultural de vestimentas de sua sociedade. Se as marcas culturais fosse outras, ele buscaria essas outras marcas para seu travestismo.
Neste momento, não vamos nos indagar sobre os motivos que provocam o fetiche, mas sim nos concentrar em sua característica que é ser episódico, delimitado a uma cena ou situação. Ou seja, no travestismo fetichista não há a necessidade de que a pessoa sinta permanentemente a necessidade de se apresentar como o gênero oposto. Ela se satisfaz em se vestir dentro de uma cena sadomasoquista por exemplo, com uma freqüência que pode até ser bem espaçada.
É razoável que, sendo o travestismo um tabu social e estando o controle dos tabus projetado na Dominadora, o submisso manifeste ou insinue seu desejo para a Dominadora, para que Ela ordene a transgressão do tabu.
Podemos discutir, por horas, se nesse caso a feminização é mesmo "forçada", já que corresponde a um desejo do submisso, porém, é inegável que ele consegue superar melhor seu bloqueio ante o tabu se ordenado pela Dominadora. Ou seja, ele necessitou da força externa da Dominadora para viver seu fetiche e isso não é pouco.
Isso que aqui relatamos como uma "liberação" ante um tabu se repete também em coisas banais numa relação sadomasoquista. Alguns homens tiveram uma educação tão machista que sequer conseguem ser educados com mulheres, pois o simples fato de manifestar gentileza é, em seu sistema de valores, um gesto "efeminado", então a relação com a Dominadora os ordena para que sejam gentis. Boa educação não é tabu, mas alguns só conseguem praticá-la depois de ameaçados pelo pelourinho...
Dominadoras e dominadores reclamam muitas vezes que precisam controlar o desejo de quebra de limites de seus submissos, que em geral se antecipa ao próprio desejo deles mesmos em dominar. Lembremos que o submisso se pretende um Id sem controle que vê em quem domina um Superego excitado sexualmente...
Deste modo, a ordem para o travestismo fetichista entra no rol dos limites a serem quebrados.
Por algum motivo, o submisso precisa de uma ordem para se travestir. Por um lado, pode se tratar de simples repressão do desejo de se travestir, que o impede de, por si, realizar o fetiche. Por outro lado, há toda a questão da conveniência e oportunidade social de se travestir. Uma Dominadora pode facilmente manter um bom guarda-roupa feminino, com vários tamanhos de roupas, sem ser importunada. Isso é bem mais complexo para o submisso, caso ele tenha também uma vida social masculina, para além dos limites da cena sadomasoquista. Em contextos não-sadomasoquistas também aparece essa questão da conveniência e oportunidade de se travestir, como no caso de festas ou de encontros e relações com outras mulheres ou travestis permanentes.
Como o fetiche se realiza num episódio, o custo social da manutenção de um guarda-roupa pode não ser interessante e muitas vezes o fetiche está em vestir as roupas de uma mulher real. Enfim, como tudo em sexualidade, as experiências podem variar.
O certo é que, neste caso, a feminização forçada funciona como ordem redentora da pulsão gerada pelo fetiche. Até mesmo o ser ridicularizado como mulherzinha, mostrando o quão grotesco o submisso fica com roupas femininas pode ter um caráter liberador, na medida em que lhe dá um parâmetro real de suas possibilidades como mulher e como travesti. Dizer que essa experiência fere a "pureza" do sadomasoquismo é propor regras de comportamento onde elas não existem.
O sadomasoquismo, como transgressão, é fundamentalmente um espaço de experimentação. Deveríamos censurar uma Dominadora que veste um strap-on e sodomiza seu submisso, porque ela está se rendendo à inveja do pênis? A tolice desse tipo de censura está em buscar a pretensão de pureza ou de autenticidade no sadomasoquismo quando, na verdade, está acontecendo uma ruptura de papéis de gênero associada a papéis de sexo, tanto na Dominadora com strap-on como no submisso travestido. É como se as pessoas em cena estivessem reinventando as representações culturais para delas obter um novo prazer. Isso está bem mais próximo da estética do que da ética, do espaço da criatividade do que do ambiente normativo.
O mesmo se aplica aqui à experiência da homossexualidade forçada nas cenas de sadomasoquismo. Seja entre submissos ou entre submissas, ou entre pares de dominação e submissão de mesmo sexo, a homossexualidade forçada não pode ser reduzida a uma "orientação sexual reprimida". O ser humano é muito mais flexível que o vocabulário médico-terapêutico, que quer impor ao ser humano a camisa de força de uma "orientação sexual com que o indivíduo se define sexualmente na vida adulta".
A cena sadomasoquista, por ser transgressora em sua natureza, acaba por rir das bem estabelecidas "orientações sexuais", que, a bem da verdade, são mais orientações de gênero do que sexuais. Bem observadas, as relações homossexuais se definem muito mais por meio de atitudes e representações culturais do que propriamente pelo comportamento sexual. Interessa ao homossexual muito mais o que ele sente e como vive do que exatamente seu objeto de interesse para o ato sexual.
O cultivo da rejeição do corpo feminino pelo homossexual masculino, ou da rejeição do corpo masculino pela homossexual feminina é muito mais uma estratégia cultural de "demarcar limites" para o "mercado das relações sexuais" do que propriamente um dado "natural" ou uma "rejeição" espontânea. Mesmo que um dia se confirmem as expectativas de que "há uma base genética para a homossexualidade", os cientistas penarão muito para demonstrar porque os homossexuais da sociedade de consumo são tão diferentes dos homossexuais de outras eras, que se manifestavam culturalmente de forma tão diversa e, em alguns casos, bem menos complicada.
O que se abre aqui é uma possibilidade bem mais ampla: se o gênero é uma construção cultural a partir da morfologia sexual, a homossexualidade não seria apenas uma "orientação", mas uma autêntica fonte de novos gêneros. A partir daí deixamos o parque da cidade e nos perdemos na Floresta Amazônica...
Por incrível que pareça, a mesmíssima situação se aplica à heterossexualidade na cena sadomasoquista. Se um submisso deseja sua Dominadora, sua submissão fica comprometida? Também não. Se uma Dominadora busca o controle para que possa transar como quer com um submisso, isso contamina algo da "pureza" do sadomasoquismo? Também não. Embora seja frequente no imaginário masculino pensar que a Dominadora é em síntese "fria", uma espécie de "virgem pervertida" que não transa com homens, apenas os devora, o fato é que boa parte das Dominadoras são mulheres heterossexuais que gostam de uma boa transa.
Talvez até mesmo de um amante, diante dos embasbacados olhares dos submissos. Não poucos submissos se decepcionam ao saber que suas Dominadoras têm orgasmo. Agora podemos compreender o porquê dessa decepção. Como depósito do Superego projetado do submisso, a Dominadora é, na verdade, a persona que contém, sob seu invólucro sádico, nada menos que a Mãe do submisso. Como nosso maior arquétipo materno sempre se refere a uma mãe virgem, chega a ser uma obviedade ser tão recorrente esse equívoco dos submissos.
A decepção é na verdade a frustração em saber que a Dominadora é uma mulher com desejos, com um Id que lhe dá pulsões em todas as direções, a fantasia narcísica do submisso de ser o Id pleno da relação se dissipa e a Dominadora perde o encanto. É um reviver do conflito edípico, ao saber que a mãe, afinal, trepa com o pai (aquela puta!). Daí se compreende melhor aqueles casos em que o submisso sai entre ressentido e traído, jurando que afinal, ela não era uma Dominadora "de verdade". Afinal, ela transa com homens!
Parte 4 - A feminização forçada como solução política
Uma outra possibilidade, bastante surpreendente e interessante sobre a feminização forçada, surge de sua viabilidade como solução política. o "Scum Manifesto" de Valerie Solanas representa, provavelmente, o radicalismo mais extremo dessa possibilidade. É o típico texto que nos faz compreender o que seria o sadomasoquismo contemporâneo se pudesse romper essa teia de delicadeza e bom-mocismo que cerca a proposta do ssc e, num contexto mais amplo, da "igualdade entre os sexos".
Parte 5 - A feminização forçada como ordem para o travestismo
Adiante veremos que o fênomeno do travestismo é mais amplo que o da feminização forçada e, por isso mesmo, bem mais difícil de caracterizar por uma única definição. Por ora, chamaremos de travestismo o desejo e a prática de se apresentar como o gênero oposto. Devemos observar que o repertório da travesti está delimitado pelos objetos e papéis culturais reservados a cada gênero.
Parte 3 - A feminização forçada como despersonalização
O nome "feminização forçada" contém o significado de que a feminização será necessariamente humilhante ao submisso. Diríamos que esse seria apenas o "caso paradigmático" da feminização forçada, aquele primeiro caso, em que o submisso não tem prazer em usar roupas femininas. Nesse caso, ao fazê-lo tornar-se mulher, a Dominadora o despersonaliza, o obriga a desmontar toda a construção cultural de gênero, ao modo como ele culturalmente aprendeu a se ver como homem e obrigá-lo a, apesar do pênis, ser uma mulher.
Para esse tipo de submisso, é uma experiência profunda de rejeição, pois está identificado com seu corpo sexual masculino e com seu gênero masculino. Não é raro submissos entrarem em típica competição masculina para saber quem agüenta mais chicotadas. Ora, suportar a dor em alto grau é, em muita culturas, um ritual de iniciação tipicamente masculino. Ele ainda estaria provando sua força de guerreiro ante os outros guerreiros e, ao ser forte, faz jus a ser o favorito da Rainha. Porém, quando a Rainha pega seu favorito, o veste de mulher e o faz desfilar para convidados e seus colegas escravos, a humilhação é profunda.
Toda sua força, seu treino para a dor, são negados. As virtudes do escravo masculino são negadas. O pensamento e, mesmo, a queixa que pode ser verbalizada por um escravo nessa situação é: Para que tanto esforço se o que você queria era um viadinho? Uma mulherzinha?
Para alguns, isso pode significar mesmo o fim do "encanto" com a relação com aquela Dominadora. Ao julgar a ordem da Dominadora, o submisso chama de volta seu Superego, a projeção acaba, pois ele não suportou ser despersonalizado a ponto de ser feito o objeto de seus próprios preconceitos. Encontrou o seu limite e a partir daí, seu ego retoma a administração do Id e Superego.
Para outros, a negação de sua masculinidade os libera para mais fundo ainda na espiral de despersonalização, sentem-se mais escravos do que nunca, pois o Ego foi aniquilado a tal ponto que não importa o corpo que tenham, o prazer vem da ordem dada pela Dominadora.
A diferença - e a variação - entre essas respostas possíveis, está no quanto o submisso percebe a reversibilidade de seu estado. Ninguém se livra do Ego. É função do Ego manter uma máscara, uma personalidade mais contínua, que socialmente chamamos de eu. No caso do submisso que julga a ordem da Dominadora, temos um ego que não percebe a reversibilidade de seu estado. Identifica-se a tal ponto com sua situação que ela fica insuportável. Ele precisa sair dali. No segundo caso, o submisso percebe que aquele estado é reversível. E é reversível a qualquer outro estado. Então ele se sente livre, aliviado, inclusive para voltar à sua vida cotidiana, pois nem mesmo ela é definitiva...
Nesse segundo caso, ao invés de apegar-se ao ego, o submisso ganha flexibilidade, aprende a tirar o prazer de seus próprios preconceitos, curto-circuita ainda mais Id e Superego. Ele literalmente "passa por uma prova" e se sente mais capaz. É evidente que a contrapartida é uma aumento de dependência em relação à Dominadora, pois essa flexibilidade tem origem naquela incapacidade do ego em sustentar o inconsciente e seus conflitos.
Se para o submisso sobrou internamente o Id como um vazio que se espraia pelo inconsciente, para a Dominadora sobrou um Superego a administrar. É notável como alguns neo-sádicos, após um pouco de experiência prática, começam a se queixar do desgaste de energia em se manter uma relação sadomasoquista. Ao receber a projeção do Superego, os sádicos passam a ter o controle nas mãos. No caso da despersonalização e, em particular, da feminização forçada, cabe à Dominadora o processo de desmontagem. Literalmente, todo o controle fica nas mãos de quem domina, o que representa um duplo desgaste: preservar a si mesmo e preservar o submisso.
É de se notar que o sadismo original, o do Marquês de Sade, não continha essa nova dificuldade. O sadismo em seu estado não-civilizado não implica em consensualidade, ou seja, dane-se o submisso. Quem quer que tenha lido Sade, notou isso. Porém, o sadismo, como prática, acaba exigindo esse "plus" de quem domina: cuidar do próximo para que ele fique vivo o suficiente para que possa continuar a dar prazer sofrendo...
Para muitas Dominadoras a despersonalização proposta pela feminização forçada é tal como outra qualquer. Trata-se de moldar o submisso a seus desejos e caprichos. Tanto faz se o submisso foi transformado em mesa ou mulher. Para outras Dominadoras é realmente uma brincadeira de bonecas feita com gente viva.
Evidentemente, quanto mais chateado e aborrecido ficar o submisso por ter que se vestir e comportar como mulher, mais interessante o jogo fica.
Para muitas Dominadoras a despersonalização proposta pela feminização forçada é tal como outra qualquer. Trata-se de moldar o submisso a seus desejos e caprichos. Tanto faz se o submisso foi transformado em mesa ou mulher. Para outras Dominadoras é realmente uma brincadeira de bonecas feita com gente viva. Evidentemente, quanto mais chateado e aborrecido ficar o submisso por ter que se vestir e comportar como mulher, mais interessante o jogo fica.
Há um prazer todo especial em "vencer" a natureza isso é, domesticar o animal para que ele aja em oposição ao seu instinto. Nesse sentido, a Dominadora manipula as próprias representações culturais dos gêneros para se impôr ao próprio sexo orgânico que o corpo do submisso apresenta. Por esse motivo, há quem veja a feminização como o termo final de todo o processo de submissão. É um extremo, que, como veremos, pode fazer sentido.
Parte 4 - A feminização forçada como solução políticaUma outra possibilidade, bastante surpreendente e interessante sobre a feminização forçada, surge de sua viabilidade como solução política. o "Scum Manifesto" de Valerie Solanas representa, provavelmente, o radicalismo mais extremo dessa possibilidade. É o típico texto que nos faz compreender o que seria o sadomasoquismo contemporâneo se pudesse romper essa teia de delicadeza e bom-mocismo que cerca a proposta do ssc e, num contexto mais amplo, da "igualdade entre os sexos".
De uma forma muito aguda, Valerie Solanas percebeu, como muitos, que a questão da diferenciação sexual, mais que uma questão moral ou natural, tornou-se uma questão política. Ter um pênis vai muito além de poder cuspir no chão, ser mal-educado, ganhar um maior salário ou mandar no parceiro. Ter um pênis significa um passaporte para o poder e a destruição sistemática do outro nas sociedades machistas, entre as quais encontramos a capitalista.
Percebida a fraude que é o mundo masculino, a mulher assume o controle da sociedade, eliminando tanto o capital como o trabalho, fazendo desmoronar o complexo sistema que justifica a inútil existência dos homens. Como ela diz: "Sendo uma fêmea incompleta, o macho passa a vida procurando se completar, isto é, tornar-se mulher."
São poucas as alternativas que Valerie Solanas vê para o homem na sociedade do futuro: ele pode permanecer permanentemente drogado, transformar-se completamente em mulher, ser confinado para reprodução até que se desenvolvam técnicas artificiais adequadas ou dirigir-se a um centro de suicídio e se matar.
De todas elas, a única que representa solução de continuidade para o homem é uma feminização radical. Só assim ele seria apto a conviver entre mulheres e o "erro" da natureza seria, enfim, corrigido. Evidentemente, o pequeno texto de Valerie Solanas deve ser lido integralmente, não cabendo muita interpretação ou explicação para sua proposta política para além de seu fundamento: os homens devem ser eliminados de uma forma ou de outra.
A feminização forçada aparece aqui como uma obrigação imposta por um novo Estado e uma nova ordem social. Usamos este exemplo para lembrar que a feminização forçada pode ir muito além do contexto do erotismo, do fetichismo ou do sadomasoquismo. Pode ser uma "solução final" para os dilemas da civilização...
Parte 5 - A feminização forçada como ordem para o travestismo
Adiante veremos que o fênomeno do travestismo é mais amplo que o da feminização forçada e, por isso mesmo, bem mais difícil de caracterizar por uma única definição.
Por ora, chamaremos de travestismo o desejo e a prática de se apresentar como o gênero oposto. Devemos observar que o repertório da travesti está delimitado pelos objetos e papéis culturais reservados a cada gênero.
Vamos, inicialmente nos deter sobre o travestismo fetichista, ou seja, aquele em que a pessoa tem excitação e prazer sexual como resultado do comportar-se ou vestir-se como uma pessoa de gênero socialmente oposto ao seu. Batom, cinta-liga, corseletes, calcinhas, sutiã só fazem sentido para o submisso fetichista se ele compreende o código cultural de vestimentas de sua sociedade. Se as marcas culturais fosse outras, ele buscaria essas outras marcas para seu travestismo.
Neste momento, não vamos nos indagar sobre os motivos que provocam o fetiche, mas sim nos concentrar em sua característica que é ser episódico, delimitado a uma cena ou situação. Ou seja, no travestismo fetichista não há a necessidade de que a pessoa sinta permanentemente a necessidade de se apresentar como o gênero oposto. Ela se satisfaz em se vestir dentro de uma cena sadomasoquista por exemplo, com uma freqüência que pode até ser bem espaçada.
É razoável que, sendo o travestismo um tabu social e estando o controle dos tabus projetado na Dominadora, o submisso manifeste ou insinue seu desejo para a Dominadora, para que Ela ordene a transgressão do tabu.
Podemos discutir, por horas, se nesse caso a feminização é mesmo "forçada", já que corresponde a um desejo do submisso, porém, é inegável que ele consegue superar melhor seu bloqueio ante o tabu se ordenado pela Dominadora. Ou seja, ele necessitou da força externa da Dominadora para viver seu fetiche e isso não é pouco.
Isso que aqui relatamos como uma "liberação" ante um tabu se repete também em coisas banais numa relação sadomasoquista. Alguns homens tiveram uma educação tão machista que sequer conseguem ser educados com mulheres, pois o simples fato de manifestar gentileza é, em seu sistema de valores, um gesto "efeminado", então a relação com a Dominadora os ordena para que sejam gentis. Boa educação não é tabu, mas alguns só conseguem praticá-la depois de ameaçados pelo pelourinho...
Dominadoras e dominadores reclamam muitas vezes que precisam controlar o desejo de quebra de limites de seus submissos, que em geral se antecipa ao próprio desejo deles mesmos em dominar. Lembremos que o submisso se pretende um Id sem controle que vê em quem domina um Superego excitado sexualmente...
Deste modo, a ordem para o travestismo fetichista entra no rol dos limites a serem quebrados.
Por algum motivo, o submisso precisa de uma ordem para se travestir. Por um lado, pode se tratar de simples repressão do desejo de se travestir, que o impede de, por si, realizar o fetiche. Por outro lado, há toda a questão da conveniência e oportunidade social de se travestir. Uma Dominadora pode facilmente manter um bom guarda-roupa feminino, com vários tamanhos de roupas, sem ser importunada. Isso é bem mais complexo para o submisso, caso ele tenha também uma vida social masculina, para além dos limites da cena sadomasoquista. Em contextos não-sadomasoquistas também aparece essa questão da conveniência e oportunidade de se travestir, como no caso de festas ou de encontros e relações com outras mulheres ou travestis permanentes.
Como o fetiche se realiza num episódio, o custo social da manutenção de um guarda-roupa pode não ser interessante e muitas vezes o fetiche está em vestir as roupas de uma mulher real. Enfim, como tudo em sexualidade, as experiências podem variar.
O certo é que, neste caso, a feminização forçada funciona como ordem redentora da pulsão gerada pelo fetiche. Até mesmo o ser ridicularizado como mulherzinha, mostrando o quão grotesco o submisso fica com roupas femininas pode ter um caráter liberador, na medida em que lhe dá um parâmetro real de suas possibilidades como mulher e como travesti. Dizer que essa experiência fere a "pureza" do sadomasoquismo é propor regras de comportamento onde elas não existem.
O sadomasoquismo, como transgressão, é fundamentalmente um espaço de experimentação. Deveríamos censurar uma Dominadora que veste um strap-on e sodomiza seu submisso, porque ela está se rendendo à inveja do pênis? A tolice desse tipo de censura está em buscar a pretensão de pureza ou de autenticidade no sadomasoquismo quando, na verdade, está acontecendo uma ruptura de papéis de gênero associada a papéis de sexo, tanto na Dominadora com strap-on como no submisso travestido. É como se as pessoas em cena estivessem reinventando as representações culturais para delas obter um novo prazer. Isso está bem mais próximo da estética do que da ética, do espaço da criatividade do que do ambiente normativo.
O mesmo se aplica aqui à experiência da homossexualidade forçada nas cenas de sadomasoquismo. Seja entre submissos ou entre submissas, ou entre pares de dominação e submissão de mesmo sexo, a homossexualidade forçada não pode ser reduzida a uma "orientação sexual reprimida". O ser humano é muito mais flexível que o vocabulário médico-terapêutico, que quer impor ao ser humano a camisa de força de uma "orientação sexual com que o indivíduo se define sexualmente na vida adulta".
A cena sadomasoquista, por ser transgressora em sua natureza, acaba por rir das bem estabelecidas "orientações sexuais", que, a bem da verdade, são mais orientações de gênero do que sexuais. Bem observadas, as relações homossexuais se definem muito mais por meio de atitudes e representações culturais do que propriamente pelo comportamento sexual. Interessa ao homossexual muito mais o que ele sente e como vive do que exatamente seu objeto de interesse para o ato sexual.
O cultivo da rejeição do corpo feminino pelo homossexual masculino, ou da rejeição do corpo masculino pela homossexual feminina é muito mais uma estratégia cultural de "demarcar limites" para o "mercado das relações sexuais" do que propriamente um dado "natural" ou uma "rejeição" espontânea. Mesmo que um dia se confirmem as expectativas de que "há uma base genética para a homossexualidade", os cientistas penarão muito para demonstrar porque os homossexuais da sociedade de consumo são tão diferentes dos homossexuais de outras eras, que se manifestavam culturalmente de forma tão diversa e, em alguns casos, bem menos complicada.
O que se abre aqui é uma possibilidade bem mais ampla: se o gênero é uma construção cultural a partir da morfologia sexual, a homossexualidade não seria apenas uma "orientação", mas uma autêntica fonte de novos gêneros. A partir daí deixamos o parque da cidade e nos perdemos na Floresta Amazônica...
Por incrível que pareça, a mesmíssima situação se aplica à heterossexualidade na cena sadomasoquista. Se um submisso deseja sua Dominadora, sua submissão fica comprometida? Também não. Se uma Dominadora busca o controle para que possa transar como quer com um submisso, isso contamina algo da "pureza" do sadomasoquismo? Também não. Embora seja frequente no imaginário masculino pensar que a Dominadora é em síntese "fria", uma espécie de "virgem pervertida" que não transa com homens, apenas os devora, o fato é que boa parte das Dominadoras são mulheres heterossexuais que gostam de uma boa transa.
Talvez até mesmo de um amante, diante dos embasbacados olhares dos submissos. Não poucos submissos se decepcionam ao saber que suas Dominadoras têm orgasmo. Agora podemos compreender o porquê dessa decepção. Como depósito do Superego projetado do submisso, a Dominadora é, na verdade, a persona que contém, sob seu invólucro sádico, nada menos que a Mãe do submisso. Como nosso maior arquétipo materno sempre se refere a uma mãe virgem, chega a ser uma obviedade ser tão recorrente esse equívoco dos submissos.
A decepção é na verdade a frustração em saber que a Dominadora é uma mulher com desejos, com um Id que lhe dá pulsões em todas as direções, a fantasia narcísica do submisso de ser o Id pleno da relação se dissipa e a Dominadora perde o encanto. É um reviver do conflito edípico, ao saber que a mãe, afinal, trepa com o pai (aquela puta!). Daí se compreende melhor aqueles casos em que o submisso sai entre ressentido e traído, jurando que afinal, ela não era uma Dominadora "de verdade". Afinal, ela transa com homens!







